Sob o signo de Pitágoras
por Alexandre Teixeira MendesInaugurando as edições Al-Barzakh , apareceu agora, numa edição limitada de
50 exemplares, o livro de António Telmo “Congeminações de um neopitagórico”.
Fica-se com a impressão, ao ler estas páginas, de que a abordagem dos
diversos textos exige à primeira vista o articular da “prima philosophia”
(assimilável a uma hermenêutica) para se apreender a instância da letra - os
traços diferenciais e constituintes duma obra - onde se interpela sobretudo
a razão poética, razão criadora. Na realidade, os “scripta” deste autor
exigem uma atenção à linguagem audaciosa - enquanto expressão “iniciática” -
e o assegurar do seu itinerário para cobrir o domínio que desejamos falar.
Da patriosofia
A relevância deste autor da “sophia”- a filo-sofia - que re-pensou e
interpretou o “logos” e “ontos” português - é geralmente lembrada em
termos de sua capacidade de oferecer uma leitura da “História Secreta de
Portugal” (Editorial Vega, Lisboa, 1977), articulando “Razão” e “Mistério”.
O problema que subjaz a esta discussão – a nossa “autognose” - é antigo, e
seu tema foi repetido em diversas variações sobretudo pela doutrinação
periodística do “57” (na essencialização do movimento da “Renascença
Portuguesa”). Tratou-se aí de um grupo estabelecido e definido - o
“Movimento da Cultura Portuguesa” - que re-colocou em discussão, nos anos
50-60, a problemática dos fundamentos ônticos e lógicos da Filosofia
Portuguesa. Entendida assim a questão surge de uma compreensão da “lógica
dos arcanos” e, portanto, da “patriosofia” (presente nomeadamente na obra de
António Quadros ou Dalila Pereira da Costa). Já houve quem apresentasse
António Telmo como “parte duma raríssima linhagem de poetas e pensadores
obscuros que têm procurado desenvolver uma tradição órfica primordial, em
que o canto e a palavra aparecem como a salvação do mundo” (António Cândido
Franco, O Filho de Orfeu (Gramática Secreta da Língua Portuguesa) in António
Telmo e as Gerações Novas, p. 77). Os seus escritos e a sua obra está in
via.
Os mecanismos da iniciação
A filosofia, segundo António Telmo, exige iniciação. Pois bem! Não há
interpretação sem iniciação. O termo “iniciação”- que se presta, por vezes
a equívocos - , deriva do latim initium, significa “começo” e também
“entrada”. À luz destas considerações compreender-se-á melhor o termo
“irmão”, adelphos, que é utilizado, mesmo em Elêusis, para os que se iniciam
juntos. A iniciação - no itinerário do pensamento de António Telmo - começou
assim, em definitivo, a partir do magistério de Álvaro Ribeiro e José
Marinho (revelou-se de modo luminoso na sua aventura no Brasil com Agostinho
da Silva). O nosso autor - conhecido pela sua formação clássica e filológica
- é hoje o exemplo típico da “fusão de horizontes” que extrai seu próprio
poder da tradição cultural e esotérica de Portugal - e cuja base filosófica
ou temática se move, em sentido estrito, no âmbito heterodoxo, inicialmente
numa amalgama da tradição unânime, que se torna, num segundo estágio,
aproximação ao substracto metafísico do hermetismo (tendo em conta o longo
processo conhecido genericamente como “iniciação”). Nos seus primeiros
escritos e posteriores justifica-se essa tradição portuguesa - de um logos
mais poético-profético que noético - que Álvaro Ribeiro identificou com a
Santa Kabbalah.
Kabbalah, sufismo e joaquimismo
António Telmo situa-se, na realidade, em face de três enfoques: a kabbalah,
o sufismo e o cristianismo dos espirituais da Idade Média (joaquimismo).
Repetidas vezes se assinalou a sabedoria mística - esotérica e secreta -
expressa através dos tempos. É mais que sabido que o cabalista ambiciona
captar o que anda escondido: nesse horizonte das visões e das revelações
tende à purificação pessoal. Aliás, o mundo do tempo surge, aos olhos do
cabalista, como exílio. Convém não esquecer que Israel está em exílio, a
Criação de Deus está em exílio, cada alma, vestida de um corpo terrestre que
o separa do Um, está em exílio. Requer-se uma via de iniciação e de
sabedoria. É suficiente que, de uma ou outra maneira, busquemos a
re-integração (o retorno à origem)? A kabbalah - enquanto tradição oculta ou
esotérica dos Hebreus - seguiu seu curso porque chegamos a levar em conta o
grau em que os processos psicológicos estão presos pelos temas da
ambiguidade da linguagem criadora de mundos. Importa porém tentar aqui uma
aproximação ao sufismo: a espiritualidade ou mística da religião do Islão
subersiva para o legalismo e o literalismo. De facto, trata-se de um termo
que foi relacionada à palavra grega sophia que significa sabedoria, e à
palavra árabe saf, que significa pureza, sendo que esta última também se
refere às vestes puras, de lã, usadas por alguns sufis. Para o sufismo o
protótipo do verdadeiro crente é o viandante. Os sufis são gente no caminho
e o sufismo é declaração de amor. Daí também ter tentado a seu modo a
activação plena de Deus no homem. Caracterizar o sufismo como realização da
unidade de Deus leva, naturalmente, a falar da substancial unidade de todas
as religiões e da confiança no futuro da humanidade. É preciso ressaltar que
os seus ensinamentos são antiquíssimos e referem-se ao despertar (na
circunvizinhança da ideia de conversão que tem por modelo o texto do
Qu’ran). O fenómeno a que chamamos dervixes, ou seja, monges viandantes
–literalmente aqueles que rezam (ou procuram) na soleira (entre os mundos) -
é uma das manifestações da irmandade que provém de Rûmî. Por sua vez, o
evangelismo apregoado pelo abade cirterciense Joaquim de Fiori, no século
XII, como se sabe, foi baptizado como a “Nova Idade do Espírito”. A sua
síntese “dialéctica” e “precursora” de Hegel toma contacto com a realização
ou cumprimento de palavras e promessas: o “pléroma” do Novo Testamento.
Joaquim de Fiori, não obstante a sua filiação à tradição patrística e
agostiniana, aproxima-se dos dissidentes e herejes ao serviço do dinamismo
do Espírito. Os argumentos do joaquimismo e do “Evangelho Eterno” - para
justificar novas “idades” ou novas “eras” – foram retomados
contemporaneamente por Agostinho da Silva.
“Versos Dourados”
Impõe-se, portanto, uma noção preliminar para explicar o título deste livro
de António Telmo: a doutrina pitagórica e a tradição numerológica-hermética.
Pitágoras mais não fez que dar forma ao dogma da perfeição da esfera que
atravessou os séculos. Lembra-nos, em mais de um pormenor, que a esfera
inclui em si todas as figuras possíveis. A sua teorização não abrangeu em
vão a astronomia explicativa e geométrica em um contexto particular,
historicamente circunscrito. O entrelaçamento de duas formas de espírito,
que geralmente se excluem - , o espírito científico e o espírito místico - ,
passam por este pensador natural de Samos (527 antes da era comum).
Pitágoras não era somente o taumaturgo, mas o mistagogo sagaz onde, por
assim dizer, ganha relevo o génio matemático cujos raros extractos e
fragmentos chegaram até nós. Mas entre todas as fontes de Pitágoras, merecem
menção especial os “Versos Dourados” ou “Versos de Ouro” (de que conhecemos
a versão de José Blanc de Portugal). Parece-nos útil assinalar, porém, o
precursor da ciência dos números e figuras que - na opinião avalizada de
Proclo – transformou a geometria em um ensinamento liberal. Poderíamos ainda
fazer alusão a os mysteria, adentro dos termos-chave do conhecimento teórico
como via da salvação (soteria). Como já observamos, é-nos completamente
impossível apresentar na sua totalidade os aspectos da religião astral do
mundo antigo - a visão da imortalidade celeste das almas - e do pitagorismo.
Vistas as coisas o mais rigorosamente possível, o pitagorismo, segundo Louis
Rougier, forneceu um quadro maravilhosamente apropriado às religiões de
mistério e às economias da salvação que desbordaram do Oriente sobre o mundo
mediterrâneo depois da conquista de Alexandre (La Religion Astrale des
Pythagoriciens). O pitagorismo moderno tem pelo menos uma coisa boa:
suscitar a re-descoberta da chamada geometria esférica. Trata-se da filiação
a uma tradição que nos remete a um corpus metafísico próximo do antigo
“saber imutável”.
Da tradição herméticaA “Ars Magna”, também chamada “Grande Obra”, é o objectivo de todo “filho de
Hermes”. Ora, a arte de interpretação remete-nos à figura de Hermes,
mensageiro divino, o qual cabe a tarefa de traduzir a vontade dos deuses
para a língua humana. Agora se torna, talvez, mais claro qual é a herança em
que se inscreve António Telmo - descendente em linha directa dos “Cabalistas
da Noite” - e cujo reportório, por exemplo, nos remete ao Sefer HaZohar, que
se traduz como “O Livro do Esplendor”. Torna-se crucial distinguir aqui a
escritura e a arquitectura de uma obra a partir de um centro: a “Escola
Portuense”. Isto me parece ainda mais importante hoje, quando se torna
imperioso acentuar – com vista a ulteriores reflexões – que nela se
privilegiavam duas distinções: a distinção entre o ensino escrito e o ensino
oral, por um lado; a distinção entre escritos exotéricos e escritos
esotéricos, de outro. O autor de Arte Poética”, superando e reasumindo o
espírito visionário e messiânico de Bruno, tem vindo a re-assumir, por assim
dizer, o pensar de Platão e Aristóteles. Estamos aqui, na realidade, em face
de uma reflexão que encontra o seu significado no facto de assimilar as três
tradições abrahámicas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, também
chamadas de “tradições do Livro”. Este conjunto de ensaios vêm esclarecer os
termos dos problemas referentes a um questionamento (para usar a
terminologia de Henry Corbin) de “espaços visionários e “geografias
imaginais”. Não discutiremos aqui as interpretações apresentadas, o que nos
afastaria do nosso propósito; contentar-nos-emos em ressaltar a admirável
“Carta ao Pedro Sinde um dos doze”, um dos clássicos “Diálogos de Thomé e
Nathan” e as anotações “Em torno d`Os Lusíadas e de Camões” ou “À volta de
Platão” ( “Crátilo ou o Mistério da Palavra”) que alcançam a sua
originalidade.
Leitura do livro e obra de António Telmo,
Congeminações de um
neo-pitagórico, Al-Barzakh, 2006.