2007/05/08
Entre a contra-história e as heresias
- a liberdade versus a ortodoxia
Alexandre Teixeira Mendes
Será que a história não passa de um cruel fardo de repressão? Seremos todos vítimas de uma história patológica? Esta característica peculiar da violência – um dos nomes do pecado original - que acompanha a humanidade, desde o início, apoia-se na incapacidade de reconhecer o “outro” (o simples e cruel desejo de impor um “outro”).
O questionamento da violência e da religião tem sido acompanhado de uma revalorização da material narrativo das minorias antes marginalizadas – da assim chamada “marca de infâmia” ou das heresias - , e não é sem razão que se insiste tanto na noção de uma “contra-história”.
Será possível uma história da “contra-história” dos traços da religiosidade que nos afiguram mais característicos do Ocidente? Não falando já da filosofia e as traves-mestras da contra-tradição hedonista que nos levam ao centro da problemática de Michel Onfray? Sabendo de antemão que a historiografia dominante no Ocidente liberal é platónica (Contre-histoire de la philosophie 1, Les sageses antiqúes, Bernard Grasset, Paris, 20006)?
O errático e o desviante
Não é exagero toda a atenção que se peça para a importância das categorias de heterogéneo, do errático, do descontínuo e do contraditório - valorizando as “paisagens” que denominamos, genericamente, “alternativas”. Poderemos simplesmente pensar a história ocidental através da categoria homogénea que deixa de fora as “realidades múltiplas” que fazem a diferença? Será que tudo o que pretendemos mostrar é a importância da heterodoxia filosófica-poética e da livre-imaginação religiosa (por vezes mesmo do desviante, do pouco razoável e do ilícito)? Contrapondo o ponto de vista de uma “história de vencidos” poderemos reivindicar expressamente o “anjo da história”? Que pressupõe tematicamente uma reflexão sobre a “redenção” necessária?
O mal em questão
Parece a todos evidente que vivemos num tempo a ou pós ideológico lido de um ponto de vista pós-nacionalista. Momentos propício para questionamentos “ad marginem”. Tornou-se hoje um lugar comum sustentar que a cultura moderna foi a portadora (ou a encarnação) do mal. Com efeito, como já vimos várias vezes, os campos de extermínio do nazismo e do estalinismo expressaram o lado obscuro de todo o acontecimento: o vértice insuperado da infâmia. Parece, pois, que a história humana ficou à mercê da loucura e do crime: dos autos de fé. Pode-se, no entanto, falar do “problema da culpabilidade” após a II Guerra Mundial? Quando a sabedoria dá testemunho de que o trágico, a dor, o sofrimento, estão associados à “conditio humana”?
Dissenso e sagrado
De uma maneira geral pode dizer-se que nunca se assistiu verdadeiramente, no caso do mundo ocidental, ao eclipse do sagrado. E isto em dois sentidos. Primeiramente, porque o predomínio de uma dimensão da racionalidade vinculada à ciência, a técnica e a produção não reprimiu a estrutura mágica-religiosa do homem moderno. Em consequência, o sagrado se mesclou nos interstícios do profano (as ritualizações e hierofanias camufladas mostram-nos isso claramente). Sabemos que as religiões dominantes legitimaram - na sua proeminência dogmática - os “arcanos da dominação” mostraram-se mesmo incapazes de dar relevo aos heterodoxos e livres-pensadores. Evidentemente, isto quer dizer que quando hoje falamos das religiões institucionais, verificamos o fim do monopólio das tradições religiosas. A isto se junta ainda algo de mais lato e significativo: a manifestação do sagrado selvagem, entregue às vivências pessoais, individuais em processo crescente de privatização e individualização. Hoje ao integrismo e ao fundamentalismo não lhe merece nenhuma confiança o pluralismo institucional e ideológico: mais ainda, toma-a como um inimigo para a fé. A “ortodoxia” religiosa tornou-se problemática na sociedade moderna: impossível dada a sua vertente totalitária.
Sanção e perseguição
A própria noção de heresia (do grego hairesis que significa escolha) aparece, no espaço euro-ocidental, após a “mudança constantiana”. A verdade é que com a constituição do catolicismo em religião de Estado, em 325, emerge, em larga medida, um sistema compacto de crenças unificadas – assente em postulados rituais, sacramentais e catequéticos fechados – que instaura, na prossecução dos seus objectivos englobantes, uma tirania eclesiástica. Esta visão unilateral - assente na dialéctica da interpretação única, pura ou autêntica - , remete-nos para a processualização da sanção e da perseguição.
No “Les Hérésies” (Heresias, Lisboa, Antígona1995), Raoul Vaneigem tem a particular preocupação em fazer entender que, no plano religioso, temos atrás de nós uma “história oculta” de variantes espirituais reveladoras da experiência intensa do numinoso – um “contra-discurso” heterodoxo face às igrejas estabelecidas (a tradição teológica-religiosa porta-voz de um autoritarismo centralizado em Roma). Talvez se deva reconhecer que a cristandade foi marcada pela adopção do esquema imperial. É a partir desse ponto que se compreendem os surtos carismáticos, messiânicos, escatológicos que abalaram a igreja visível e institucional. Porque está o elemento decisivo no culto do “Livre Espírito”? E como se pode ainda compreender essa galáxia de heresias classicamente apreendidas como um dado objectivo desconhecido (o que se poderia chamar de bipolaridade da inquietação entre um milenarismo revolucionário e o anarquismo místico)?
Poder versus verdade
O advento do que queremos falar é o da tomada de consciência gradual da tensão entre autoridade e dissensão: a revelação profana. Um golpe de vista agrupará algumas das formas heréticas e aproximar-nos-á do seu carácter: albigenses ou cátaros, valdenses, os pseudo-apóstolos ou apóstolos de Cristo, Joaquim de Fiori, os beguinos, etc., etc.. O “dissenso” tornou-se um sinal de heresia. Para a igreja ocidental, totalitária, a heresia identificou-se a desvio e a danação, fundada no pressuposto despótico e monopolista do poder e da verdade (embora se admita que a lógica da coerção e da superstição – a “guerra santa” - renasceram e assumiram hoje novo e vibrante significado no Islão).
Kaballah: visão mística e mítico-poética
É certo que a noção nuclear de“contra-história” - estritamente falando – reduz-se em tomar a história “a contrapelo”, na sobrecarregada formulação do filósofo judeu alemão Walter Benjamim, ou pelo “avesso”. Para uma compreensão mais clara do conceito de “contra-história”, nada melhor do que recorrer à obra de David Bial “Gershom Scholem: Kabbalah and Counter-History”, “Cabala e contra-história: Gershom Scholem” (Perspectiva, S. Paulo, Brasil, 2004) – que nutriu essas considerações preliminares. A “contra-história”, aqui entendida em sua dimensão significativa, é constituída pela Kabbalah a partir de uma visão mística e mítico-poética da história judaica em um determinado momento histórico.
Tradição subterrânea
Tal como Gershom Scholem (1997-1987) o indica, a Kabbalah, uma tradição recalcada e esotérica, constitui a chave da vitalidade do judaísmo como tal. Torna-se crucial considerar esta tradição “subterrânea” ou “secreta” – onde latejam poderosas forças que re-ligam o mito e a mística - para discutir a história “dominante” ou “oficial”. O exame do messianismo judaico a este respeito, põe de manifesto a versão heterodoxa face a um modelo cultural hegemónico - sem as habituais fórmulas autoritárias ou dogmas – uma natureza intrinsecamente anárquica em exclusividade. Este comentário permite compreender por que o advento do Messias pode achar-se posta como abolição das restrições da Torá, dando início a uma transformação gradual cuja finalidade parece ser a do desaparecimento das interdições e proibições.
Evoca-se, suficientemente, a kabbalah como a chave para a “vida secreta do judaísmo”. Deste modo, as suas melhores análises desvendam não só o papel desempenhado pela mística na revitalização do judaísmo, mas também das “contra-histórias” radicais que apontam para movimentos subterrâneos e mesmo heréticos.
Escolha e fanatismo
O nosso âmbito parece mover-se num círculo vicioso: a ortodoxia e a heresia, a fé, a dúvida e a fé rival. Pensar hoje na heresia é admitir que a “escolha” se tornou uma prioridade. Pois bem. O pluralismo da sociedade e o relativismo das cosmovisões na modernidade se apoderou dos indivíduos. Se considerarmos mais pormenorizadamente o caso, verificamos que o pluralismo e a tolerância originaram-se do “ethos” do nosso tempo: a chamada urbanização. A modernidade não seria então mais do que a universalização da heresia, um resultado necessário da pós-modernidade? Como entender o “imperativo herético” nessa vertente do sagrado des-reprimido e incontornável? Será questão de moda ou consequência do actual dinamismo post-cristão?
Podemos reclamarmo-nos de uma “contra-história” da fé? Sabendo que, em princípio, no decorrer da história humana, a maioria do fanatismo tem sido religioso?