2007/05/31

Barros Basto in Cecil Roth-a maranussim perspective-(English translation pending)
Alexandre Teixeira Mendes


Paul Goodman (left), President of the London Marranos committee and Co. (are the others Cecil Roth (middle) and Lucien Wolf?) in Porto.
(photo courtesy of Barros Basto Museum)




BARROS BASTO WITH HIS GRANDFATHER
(photo courtesy Barros Basto Museum)

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Barros Basto em Cecil Roth
– a perspectiva maranussim
(Barros Basto in Cecil Roth-a maranussim perspective-English translation pending)

Alexandre Teixeira Mendes

Os maranussim (cripto-judeus) associados ao nome de Barros Basto (1887-1961) e a uma herança prestigiada (na sua etimologia à parte: prae-stringere, prae "pré, antes", stringere apertar, constranger) atraiu, em sua fascinação, também a Cecil Roth (1899-1970). O Portugal dos maranussim desempenhou em Cecil Roth um papel de primeiríssima ordem. A singularidade marrana é, sem dúvida, um dos temas fundamentais da historiografia cecilrothiana: um tópico ímpar e padronizado, trazendo como consequência o cripto-judaísmo para o centro dos debates da historiografia moderna.
A obra de Cecil Roth marca uma etapa fundamental no (re)questionamento do marranismo dando claramente lugar à reflexão –interpelação e/ou identificação - do ethos dos maranussim (a sua natureza (in)comunicável, o seu carácter, a sua dignidade, a sua "eticidade"), ela já é um instrumento de trabalho indispensável para qualquer pesquisador. Os seus livros apresentam-se, assim, a quem os explore atentamente, mais fundamentais e precisos do que parecem à primeira vista. Associamos-lhe antes a ideia de "pioneiro".
A sua reflexão da experiência marrana reflecte-se na sua tentativa de compreender o seu carácter distintivo e absolutamente único. Muito custou e ainda custa aos historiadores descortinarem esta psicologia (da/ou (dis) simulação) do cripto-judaísmo português - como sistema de crenças e práticas - que se poderiam, grosso modo, classificar de sincréticas (há na sua estruturas sociais e culturais, desde início, um terreno fecundo de "contaminações").
O marranismo, no seu conjunto, significou forçosamente a posição de judeus desapossados, testemunhando uma espiritualidade condicionada pelo meio católico em que se desenvolveu. Queremos apenas ter em conta que a°∞mescla°±marrana se apresenta susceptível da intimidação e das compressões específicas do enredo da história até à modernidade (que suscitou no contexto português desfechos por vezes trágicos). Este enfoque crítico do cripto-judaísmo português – que remonta ao livro de Samuel Schwartz (1878-1953) Os cristãos-novos em Portugal o século XX (Empresa Portuguesa de Livros L. da, Lisboa, 1925), intérprete do património secular marrano – presente nomeadamente nas tradições e nas cerimónias em segredo em Belmonte - forneceram-nos as ferramentas essenciais para a análise do nosso património "secreto", enquanto religiosidade popular hebraica pluri-centenária, pouco valorizada na época. Este livro heteróclito, repleto de informações preciosas, transcreveu, a esse respeito, rezas e orações - a "verba visibilia" marrana - palavras visíveis - , semelhantes em forma e estilo aos "piutin" (poemas litúrgicos).

Identidade narrativa

Cecil Roth, como se sabe, dá início à análise sem "clichés" do passado judeu sefardita, renegado ou esquecido, como principal historiador, em inícios da década de 30, época que coincide com o auge do movimento resgate dos marranussim liderado por Barros Basto, tendo como núcleo identificável Trás-os-Montes e as Beiras, símbolo para toda uma geração que buscava sobretudo uma identidade judaica (aquilo que o filósofo Alasdair MacIntyre dá o nome de “identidade narrativa”).
No centro das suas investigações, situam-se os marranos - e, justamente, no decurso de uma "história viajante"- cujas raízes simbólico-religiosas vieram por excelência a servir como norte e inspiração. Ao longo do seu percurso académico na Universidade de Oxford retoma, de diferentes formas, as suas pesquisas em torno dos judeus maranussim, que marcaram de forma indelével a historiografia dos anos 40 e 50. Revela-se, então, uma constante: a atenção aquilo que pode justamente ser descrito como marranismo, no que Cecil Roth denomina "o episódio mais romantizado de toda a História", pautando-se por uma singularidade peculiar. Dito isto, não surpreenderá a sua amizade com Barros Basto - um dos protagonistas do resgate dos marranos portugueses – que o autor de A History of the Marranos conheceu somente em 1929. Recordemos brevemente as etapas mais evidentes desse processo.

Figura incontornável

No estudo do marranismo em que se desenvolve a reflexão de Cecil Roth, não é possível não se deter diante do tipo de "cristão novo" actuante que constitui, para ele, a figura incontornável de Barros Basto: daí provém um relacionamento em que se opera um profundo deslocamento do seu campo investigativo (a historicização do marranismo).
Escritor exigente e informado, com uma formação talmúdica de base, Barros Basto entreabre-lhe, tanto quanto possível, o véu da história dos marranos. Ora, o que aos poucos se torna claro, sobretudo depois de 1929, quando se conheceram, é que a tomada de consciência marrana de Cecil Roth deixa de ser uma mera abstracção. Nos anos 20-30, o cripto-judeu (como o marrano) tornara-se uma 'figura improvável”. Admite, pelo menos depois desta data, a sua vontade de escrever o majestoso e longo empreendimento de História dos Marranos Este ensaio, onde alia uma cultura fascinante, um carácter de historiador erudito à moda antiga e preocupações metodológicas das mais exigentes, não pretendeu esgotar a resposta a todas as perguntas. O seu propósito foi o de retomar o problema da originalidade marrana: o °∞marranismo em movimento”. Na séria, profunda e honesta reflexão acerca das principais °∞figuras” marranas - em distintas épocas e lugares do passado e do presente nas quais o marranismo se estruturou como "nation" (nação) - , o nosso autor estudou a amplitude dos acontecimentos do passado histórico e os obstáculos colocados a uma existência e uma fé plenamente vivida no presente.
Literalmente fascinado pelas questões da "religião dos marranos"- este lugar privilegiado dos “sincretismos” que não é, a maior parte das vezes , senão uma relíquia do passado-, Cecil Roth estudou substantivamente o seu núcleo heterogéneo e as suas expressões históricas concretas (demonstrando uma grande familiaridade com os temas ancestrais do cripto-judaísmo). O nosso académico acabou por representar bastante bem o centro da gravidade da configuração complexa da nova historiografia judaica – uma via de "desmitização"- que se condensa no espantoso empreendimento de uma investigação que não cessou de crescer ao longo dos anos.
A influência carismática de Barros Basto sobre Cecil Roth – tendo presente a sua acção educadora, selectiva, cogitante de um demo-liberal que, no quadro histórico do fim do século, re-ligou experiências diversas com uma particular intensidade – é bem patente neste historiador anglo-judeu conhecido pelas suas ideias geniais e audácias interpretativas. A amizade, a atenção simpatizante, persistiu, mesmo após o "processo ardiloso” - com a acusação de homosexualidade a Barros Basto - , que culminou com a sua destituição do Exército em 1943, e em que se assiste ao seu “assassinato”: da sua identidade e personalidade jurídica e moral. Desde o início, Barros Basto polemizou com a realidade bifronte portuguesa – o totalitarismo do Estado Novo de estruturas fortemente repressivas e cerceadoras das liberdades fundamentais após o ter apoiado – cujo movimento de resgate suscitou, definitivamente, a inquietação e a hostilidade dos poderes estabelecidos da direita tradicionalista e arcaica enquanto tal (os sectores clericais-integristas, monárquico-legitimistas, corporativos e judaicos mais reacionários).

Condição marrana

Assinalei a importância que parece ter tido Barros Basto na realização da monumental História dos Marranos. Não é exagero dizer que poucas coisas de que conhecemos foram de tão grande importância como a amizade entre Cecil Roth e Barros Basto. Tente-se agora reflectir um pouco sobre ela. E para que se compreenda melhor esta amizade que nasceu durante uma viagem de caminho de ferro – o Sud-Expresso - ao Porto, em 1929, interessa referir, antes de tudo, o opúsculo de 29 páginas O Apóstolo dos Marranos, escrito em Londres, Julho desse mesmo ano, de que só conhecemos a versão francesa publicada por L`Univers Israélite, 20, Rue Turgot, Paris (existente na livraria da sinagoga do Porto).
O professor da Universidade de Oxford (Inglaterra) e um dos fundadores do Portuguese Marranos Commitee de Londres visitou juntamente com a sua esposa as velhas judiarias da cidade, o terreno da futura sinagoga e a sede da Comunidade Israelita do Porto assistindo a ofícios religiosos no seu oratório, tendo conferenciado largamente com Barros Basto. O Apóstolo dos Marranos não teve novo contacto com Cecil Roth até ao ano de 1931, quando de uma nova visita ao burgo portuense.
Poder-se-ia dizer que Artur Carlos Barros Basto representou - para Cecil Roth - a condição marrana -– maravilhosamente situado e influente na sua época: primeiro, porque o seu temperamento particular está em intenso acordo com da consciência dramática contemporânea, mantendo-o sempre aberto à interpelação das "fundações secretas" do marranismo, e, em segundo lugar, porque dispunha de admiráveis fontes de comunicação. A sua inteligência penetrante e multiforme fê-lo reconciliar com o seu destino: a obra de magistério (com a institucionalização do movimento de resgate que sela, então, uma aliança com o despertar marrano, a iniciativa das primeiras comunidades nas Beiras e Trás-os-Montes). Por outro lado, poderíamos, a rigor, falar de uma personalidade maleável e flexível – muito embora militar de carreira - , que revelou, marcadamente, uma faceta de escritor que se desdobra em metafísico, ensaísta e sobretudo em publicista. Quase somos tentados a afirmar que nele preexistem os três tipos fundamentais da espiritualidade judaica – o piedoso, o justo, o sábio. Daqui a reconhecida necessidade da liberdade de pensamento e democracia cultural que são próprias do judaísmo. Enfim: a liberdade de interpretação, discussão e confronto tão presente na história da Sepharad. Assim, se bem se considera, o pensamento judaico, no seu filão central – avesso à ideia de dar origem a um sistema explicativo, a uma escola filosófica ou religiosa particular – que culmina no ideal da vida segundo a Torá - , julgou construir a cidade de Deus no tempo, neste mundo (Olam Hazé), sem se perguntar quando o tempo vai atingir seu fim escatológico no mundo por vir (Olam Habá). (Evaristo E. De Miranda, José M. Schorr Malca, Sábios Fariseus, Reparar uma injustiça, Edições Loyola, São Paulo, 2001, p.76).

Encontro-chave

Este “encontro-chave” de Cecil Roth com Barros Basto, se lhe dermos o seu sentido integral, trouxe muitos benefícios a ambos. Posteriormente o apoio de Cecil Roth ao "Movimento de Resgate" foi crucial e, quanto a isso, Barros Basto teve para com ele, indubitavelmente, uma dívida de gratidão. O historiador de Oxford que ficou fascinado com a personalidade de Barros Basto escreveu: "O homem com o qual me encontrava pela primeira vez, é sem dúvida uma das mais marcantes personalidades hebraicas do nosso tempo". Naturalmente que essa simpática referência deve ser situado não só historicamente mas também num contexto em que se ia desenrolando e aprofundando o movimento de resgate dos marranos. De salientar que o artigo acabou por ser publicado nesse mesmo ano nos números 25 - Porto – Tebet de 5690, Ano IV - e 26 - Porto – Kislev de 5690 (1929 e.v.), ano IV, - do orgão da Comunidade Israelita do Porto - Ha-Lapid - dirigido por A. C. de Barros Basto (Ben –Rosh), numa tradução do italiano de José Pardo Roques.
Mas havia outras razões, além do que podiam parecer predominantemente sentimentais, para que Cecil Roth se sentisse fascinado perante Barros Basto. Outros de modos de olhar para Barros Basto pecaram, indubitavelmente, pelas suas vistas curtas e estreitas. Ele colocou-se, não apenas como restaurador da velha tradição marrana, tão fielmente quanto possível, o que lhe granjeou a simpatia de espíritos heterodoxos, mas ainda como líder religioso e cidadão atento às “virtudes cívicas” republicanas, o que lhe valeu a animadversão dos conformistas e dos reacionários. Para cumprir a sua missão, foi obrigado a medir as suas acções, a tentar dominá-las, colocando-as ao serviço do bem comum. Dotado de um sentido político pouco vulgar, e, sobretudo, pragmático - arte de tomas decisões, no fundo, - fez face constantemente a urgências, a obstáculos inesperados, surpresas, consequências subsidiárias, manigâncias e manobras, que pareciam ocasionalmente querer comprometer o resgate. Já o demonstrámos: adoptando uma atitude olímpica no plano da acção deu origem a muitas confusões e equívocos. Ele colocou-se diante de uma encruzilhada dos caminhos da história: lutou contra o conformismo e a apatia social; as manobras de bastidores, chantagens e artimanhas, duplicidade e intrigas de um poder arbitrário.

Magnetismo

Impressionado pela personalidade, o temperamento nada acomodatício de Barros Basto, "talvez a mais magnética de quantos eu me havia aproximado", conforme assinala no seu opúsculo - Cecil Roth refere-se à sua actividade e energia ao enquadrar o grande desafio sócio-histórico do resgate. A figura de Barros Basto é, não raro, mitizada e alçada à altura do herói. Dado que a sua acção traduziu-se numa revitalização de todas as forças judaicas: chegou às bases populares. A sua estratégia foi iniciar ab ovo um tipo diferente de comunidade, do qual sairiam rabis novos. A chave era introduzir uma prática religiosa diferente com uma liturgia sefardita adequada: criar seminários onde os formadores seriam importados da Europa e reforçar mais e mais a ligação directa ao centro condutor do resgate dos marranos – Porto e seu Instituto Teológico. A orientação original do seu “propositum” não é a fuga mundi mas comunional. Neste ponto é ainda necessário salientar o seu magistério socrático - nítido, inequívoco- de transmissão oral, mesmo em condições extremamente desfavoráveis.
Uma vocação marrana vivida em toda a sua integridade informou todos os aspectos da existência de Barros Basto. Através do seu ministério recrutou e formou marranos (com o auxílio de cooperadores e de animadores capazes de conjugar as dimensões caritativa, litúrgica e comunitária). Mais: de um modo pungente e inteligente, sem usar a propaganda em grande estilo, sondou as vias da lucidez e da acção - definiu estratégias – no caminho da direcção espiritual.

Edifício invisível

Persiste ainda hoje uma longa e complexa discussão acerca do marranismo historizado por Cecil Roth (que re-descobriu o seu “edifício invisível”). Na problemática actual, há um facto de toda a evidência: o reconhecimento da aventura marrana que acabou por se tornar uma experiência psicológica complexa. Concretamente, em Portugal, o marrano recusou a sua não-significação. Os marranos, como os chuetas, permaneceram excluídos e limitados nas suas opções espirituais (mesmo que nos limites das variantes contextuais e situacionais). Por isso é que se, aprofundar-mos um pouco a forma como os marranos se colocam sob a égide das hibridações culturais, descobriremos uma vocação compósita, ante as circunstâncias limitadoras ou adversas, de transposição das fronteiras (interiores e exteriores) sob o signo de um compromisso defensivo: o sincretismo heterodoxo.

Alexandre Teixeira Mendes