SOBRE A CORRECTA ORTOGRAFIA DO NOME ESPINOSA
(On the correct spelling of the name Espinosa)
by Antonio Bento
א
א א
«As translúcidas mãos do judeu
Lavram na penumbra os cristais
E a tarde que morre é medo e frio.
(As tardes à tarde são todas iguais.)
As mãos e o espaço de jacinto
Que empalidece no confim do Gueto
Quase não existem para o homem quieto
Que está sonhando um claro labirinto.
Não o perturba a fama, esse reflexo
De sonhos no sonho de outro espelho,
Nem o temeroso amor das donzelas.
Livre da metáfora e do mito
Lavra um árduo cristal: o infinito
Mapa d’ Aquele que é todas as Suas estrelas.»
Lavram na penumbra os cristais
E a tarde que morre é medo e frio.
(As tardes à tarde são todas iguais.)
As mãos e o espaço de jacinto
Que empalidece no confim do Gueto
Quase não existem para o homem quieto
Que está sonhando um claro labirinto.
Não o perturba a fama, esse reflexo
De sonhos no sonho de outro espelho,
Nem o temeroso amor das donzelas.
Livre da metáfora e do mito
Lavra um árduo cristal: o infinito
Mapa d’ Aquele que é todas as Suas estrelas.»
«Espinosa», in O Outro, o Mesmo, Jorge Luis Borges, 1964.
«Nec per somnium cogitant» é uma estranha locução latina – que corresponde, sem dúvida, a um modismo da linguagem popular portuguesa: «nem por sonhos lhe passa pela cabeça» – de que Espinosa um dia se serviu naquela sua obra (Tratado Teológico-Político, prefácio, 9) a que alguém chamou «um livro forjado no Inferno». São vários os autores que pretendem que esta anómala construção latina seria impossível se a língua familiar da puerícia e da adolescência do filósofo não houvesse sido o português. Afirmam alguns dos estudiosos do pensamento de Espinosa que «nem por sonhos» era expressão corrente e popular no Portugal do século XVII, podendo por isso presumir-se que corria familiarmente entre os ex-marranos portugueses de Amesterdão. Carl Gebhardt, o autor da edição da Opera de Espinosa, vai ao ponto de afirmar que Espinosa não pensava nem em hebreu, nem em latim, nem em neerlandês, mas em português. Do mesmo facto dão notícia os primeiros biógrafos de Espinosa: Jean Maximilien Lucas e Johann Köhler (João Colerus). Por outro lado, a confirmar esta suspeita está o facto de o próprio Espinosa se ter queixado, numa carta (XIX) de 5 de Janeiro de 1665 dirigida ao seu amigo Blyenbergh, de não ser capaz de exprimir bem o seu pensamento em neerlandês, desejando poder fazê-lo «na língua em que fui educado», ou seja, na mesmíssima língua que os judeus da «Nação Portuguesa» de Amesterdão usavam em casa, na rua, nos notários e nos documentos internos da comunidade. Mas se hoje se dá por adquirido que a língua falada por Espinosa na casa paterna era o português; se foi também em português que em 1656 Espinosa foi posto em Herem pelos «Senhores do Mahamad» [Conselho dos Anciães]:
«Com sentença dos Anjos, com dito dos Santos, excomungamos, apartamos e amaldiçoamos e praguejamos a Baruch de Espinosa… com todas as maldições que estão escritas na Lei [Torah]. Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar e maldito seja em seu levantar, maldito ele em seu sair e maldito ele em seu entrar; não quererá Adonai perdoar-lhe, que então fumeará o furor de Adonai e seu zelo neste homem… E vós, os apegados com Adonai, vosso Deus, vivos estais vós hoje. Advertindo que ninguém lhe pode falar verbalmente nem por escrito, nem prestar-lhe nenhum favor, nem debaixo de tecto estar com ele, nem junto de quatro côvados, nem ler papel algum feito ou escrito por ele.»
a questão da correcta ortografia do nome do «embriagado de Deus» mantém-se numa relativa penumbra que convém iluminar. Com este propósito em vista, seguem-se duas ou três informações sobre aquela que os eruditos consideram ser a correcta ortografia do nome de um ilustre marrano de ascendência portuguesa: Baruch (Bento) de Espinosa.
O Professor Joaquim de Carvalho (“Sobre o lugar de origem dos antepassados de Baruch de Espinosa”, in Joaquim de Carvalho, Obra Completa, vol. I., Filosofia e História da Filosofia, 1916-1934, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1978, pp. 367-401) tratou do problema da correcta ortografia do nome grande filósofo (que possui já a sua pequena bibliografia) de modo não apenas exemplar, mas, pode dizer-se, definitivo.
São conhecidos os diferentes modos de grafar o nome do autor da Ética demonstrada à maneira dos geómetras: Espinosa; Espinoza; Spinoza; Spinosa. Desde logo, o problema começa com o facto de o próprio filósofo ter escrito o seu nome de diferentes modos, variando a sua assinatura autógrafa. E disso há registos e cópias disponíveis quer nos arquivos holandeses quer na biblioteca pessoal do «embriagado de Deus»: Benedictus Spiñosa; Bento de Spinoza; Bento despinoza, etc. O pai de Baruch Espinosa, natural da vila alentejana da Vidigueira («Michael de Espinosa van Vidiger», como consta no registo do contrato de casamento), já então a viver com a família em Amesterdão, assinava Michael despinoza. Mas na dedicatória de Esperanza de Israel, obra de Menasseh ben Israel, é o próprio autor Menasseh (Manuel Dias Soeiro de seu nome cristão) quem escreve «…ao amigo Michael Espinosa».
Segundo Leite de Vasconcelos e Carolina Michaëlis de Vasconcellos: «o apelido Espinosa ou Espinoza é de origem espanhola (como muitos outros portugueses, por exemplo: Aguilar e Castilho), do latim Spinosa, palavra empregada primitivamente como designação topográfica; se a palavra fosse de origem portuguesa, teria a forma Espinhosa.»
De acordo com os meus próprios cálculos, posso arriscar dizer que a família de Michael Espinosa (pai de Baruch) terá entrado (após a expulsão de Castela) em Portugal pela fronteira de Valência de Alcântara, fixando-se os seus membros primeiro em Castelo de Vide, depois em Évora e mais tarde na Vidigueira. A segunda mulher de Michael Espinosa, mãe de Baruch, cujo nome figura no assento de casamento como Hannah Debora Espinosa, levanta ainda hoje a questão de se saber se Debora deve ser considerado nome próprio (o mais provável) ou toponímico (natural de Évora).
Prossigo com o relato do estudo de Leite de Vasconcelos – transcrito por Joaquim de Carvalho – sobre as variantes registadas do apelido do filósofo: «A supressão do e resultou da confusão dele com o e da preposição de (isto é, Baruch de Espinosa = d’Espinosa = de Spinosa) ou de influência latina; o z por s reflecte a pronúncia portuguesa do século XVII e fins do século XVI. Se escrevermos, como escrevo, Espinosa, iremos de acordo com a etimologia».
No mesmo sentido vai a observação de Carolina Michaëlis de Vasconcellos (cf. “Uriel da Costa. Notas relativas à sua vida e às suas obras”, in Revista da Universidade de Coimbra, vol. VII, 1922, p. 294), a qual explica o facto de Michael Espinosa (pai de Baruch) e Gabriel Espinosa (irmão de Baruch) usarem, eles próprios, algumas vezes, a grafia Espinoza com z, por ser «moda no seu tempo» – alega a erudita – «representar a sibilante branda intervocálica por .z.» Mais acrescenta a ilustre filóloga: «[esta ortografia] ainda hoje é favorecida por muitos que, pondo de lado a motivação etimológica, entendem que, desde que a pronúncia evolutiva igualou o fonema z a -s intervocálico (reduzindo o seu valor antigo de ds) seria prático decretar o seguinte: no início de palavras, e de sílabas, depois de consoantes, isto é, sempre que se trata de uma sibilante forte (ss) escreve-se s; tendo valor brando, entre vogais portanto, escreva-se, pelo contrário, z. Regra anti-etimológica, mas prática (incompleta embora, porque não se importa com as sibilantes finais), recomendável uma vez que só uma minoria muito pequena sabe porque motivo escrevemos razão, rezar. – Em todo o caso, os estrangeiros (alemães sobretudo) devem aprender como se pronuncia o nome do grande Panteísta; com ó muito aberto, e z com o valor de s brando. E não Spinotza.»
Com efeito, num texto posterior (Antroponímia Portuguesa, 1928, p. 413) o mesmo Leite de Vasconcelos retoma o seu argumento original para considerar que «Espinosa, ou é de origem geográfica espanhola (há em Espanha várias povoações assim chamadas), ou é deformação, devida a estrangeiros, de Espinhosa, nome corrente na nossa toponímia».
Pessoalmente, inclino-me para esta última hipótese. Se os remotos ascendentes do filósofo pertenciam, como alguns estudos o sugerem, às famílias judaizantes de Castelo de Vide entradas em Portugal pela portaria de Marvão, não será por acaso que nessa vila ainda hoje existe, próxima da judiaria, uma rua com o nome Espinosa (que o povo pronuncia e escreve Espinhosa). De igual modo, quem, nos dias de hoje, visitar a cidade de Évora e subir a Rua 5 de Outubro (antiga Rua da Sellaria), a qual tem o seu início na Praça do Giraldo, ao lado da livraria Nazareth, e se dirigir para a Sé Catedral, encontrará, alguns passos adiante e à sua esquerda, o Beco da Espinhosa…
A título informativo, talvez valha ainda a pena referir que a Câmara Municipal da Vidigueira, terra de nascimento de Michael Espinosa, pai de Baruch Espinosa, publicou, em 2002, «Vida de Bento de Espinosa», de João Colerus (a 2ª biografia do filósofo, depois da de Jean Maximilien Lucas), para assim homenagear o autor do Tratado Teológico-Político e da Ética. Informação vasta e preciosa sobre a comunidade portuguesa de Amesterdão, onde Baruch Espinosa veio a nascer, encontra-se na mais recente – e, a meu ver, a melhor – biografia do filósofo: Espinosa. Vida e Obra, de Steven Nadler.
António Bento