2006/10/17

As “chaves dos sonhos” e a qabbalah

Alexandre Teixeira Mendes

Sirvo-me aqui do ensaio de Moshe Idel “Os Cabalistas da Noite” - publicado pelas Publicações Pena Perfeita, de Leça da Palmeira, numa tradução do inglês por Pedro Sinde - , como pre-texto para falar da qabbalah (uma “via” de iniciação”). Podemos, acaso, falar do sentido “poético” (será preciso lembrá-lo?) da qabbalah? E justamente da sua face paradoxal (nocturna) que vem da codificação escrita (Torá) de uma transmissão oral? A partir do conhecimento oculto de um deus oculto a qabbalah assumiu-se, contudo, como uma re-flexiva meditação “existencial”. Julgo, todavia, que os cabalistas (bem perspicazes) reencontraram-se nas suas luminosas indagações diante da região dos sonhos e das pulsões (a energia psíquica das pulsões, a libido, que sempre foi mantida por Freud de natureza sexual, contra a insistência de Jung em afirmá-la como energia psíquica não especificada). O cabalista não ignorou os sonhos (e o que nos remete ao espaço onírico e os seus indícios, marcas, cifras, as “chaves dos sonhos”- e sobre eles versa). E as “visões nocturnas” dos profetas - , chamando a atenção, tal como se encontra expressa na Bíblia, para as suas características premonitórias, e a sua interpretação, como no caso de José (Génese, XL, 16-25) e de David (Dan., II, 19), é atribuída a uma inspiração divina. É mais que sabido que o cabalista ambicionava captar, a seu ver, o que anda escondido: nesse horizonte das visões e das revelações tende à purificação pessoal. Aliás, o mundo do tempo surge, aos olhos do cabalista - que não se deixa seduzir por chaves de explicação demasiado fáceis - , como exílio. Convém não esquecer que Israel está em exílio, a Criação de Deus está em exílio, cada alma, vestida de um corpo terrestre que o separa do Um, está em exílio. Requer-se uma via de iniciação e de sabedoria. É suficiente que, de uma ou outra maneira, busquemos a re-integração (o retorno à origem)?
Uma lógica paradoxal
No contexto dos estudos da tradição mística e messianismo judaicos a face da mudança da pesquisa histórica-filológica no século XX teve um nome: Gershom Scholen (1897-1987). A sua obra passou a ser um ponto de referência mais fundada - talhada à medida de um estudioso do pensamento cabalístico - a tradição textual da qabbalah - e de um porta-voz moderno do judaísmo. Suficientemente conhecido em todo o mundo para não ser preciso insistir no relevo da sua personalidade, Moshe Idel é actualmente, sem dúvida, um dos mais brilhantes e criativos estudiosos da qabbalah (de que temos como exemplo a edição em português de “Cabala, Novas Perspectivas” (2000). Começando a sua carreira académica na Universidade de Haifa seguida da Universidade de Jerusalém, doutorou-se em qabbalah , com a distinção máxima, com uma tese sobre o místico do século XIII Abraham Schmuel Abulafia e seus escritos. Na trilha e muitos e notáveis historiadores da qabbalah - directamente ligados à escola de Gershom Scholen que acabamos de invocar - este pequeno opúsculo de Moshe Idel centra-se não apenas nos sonhos, mas nos processos - ou vias - de acesso à esfera divina (que os judeus designam o Santíssimo). O académico israelita - professor de História e Pensamento Judaico da Universidade de Jerusalém - conhecido pelo seu estilo rigoroso, prudente, objectivado, pouco límpido, tenta recapitular alguns elementos básicos das concepções cabalísticas do sonho - o estatuto do sonho - que, segundo a linguagem de Freud, revelam um inconsciente incognoscível, intemporal e rico de conteúdo que “prolifera no escuro” - dentro de um tríplice aspecto: a/ os sonhos-resposta (de teor mágico) com suas repercussões na cabala extática ( onde é preciso ter em conta os estados intermediários da consciência - garantia daquilo a que podemos chamar “revelações”); b/ os sonhos e as técnicas que projectam a ligação aos poderes angélicos e divinos - cuja recepção traz o selo do profeta Elias - e onde com frequência se evocam os versículos bíblicos de modo a proporcionar ao cabalista um mapa que adequa a rede de associações a um padrão maior de teor místico (onde se valida, por exemplo, a bibliomancia, como um conjunto de técnicas para descobrir respostas a interrogações na Bíblia abrindo-a ao acaso); c/as técnicas de indução de sonhos que nos conduzem, no seu alcance prático, às revelações visuais (onde, ao mesmo tempo, a aparição é tomada como dado auto-implilcativo e portanto lida como “evidência” que sustenta a visão sublime). O grande mérito deste opúsculo de Moshe Idel é revelar-nos os sonhos induzidos de alguns cabalistas que através da sua simbólica sob vários aspectos procuravam resolver os seus problemas. Sonhos interpretados e postos à vista de todos - enquanto relatos que lidavam com o tema da natureza do nome divino - , no qual se descobre a visão tradicional da sabedoria judaica secreta transmitida oralmente desde a mais Alta Antiguidade. Observamos que a tarefa do cabalista é desenvolver técnicas apropriadas, compreender determinadas experiências oníricas por detrás do sonho-resposta. Estamos mais uma vez diante de cabalistas cruciais e inspirados que se mostraram capazes de desenvolver procedimentos e técnicas místicas (usando uma linguagem figurativa e metafórica pouco trivial). Em cada um dos seus exemplos, a consideração que as técnicas se complementam sobressai imediatamente.
Ambiguidade da linguagem
A Cabalá - enquanto tradição oculta ou esotérica dos Hebreus - seguiu seu curso porque chegamos a levar em conta o grau em que os processos psicológicos estão presos pelos temas da ambiguidade da linguagem criadora de mundos. Esta ambiguidade da linguagem está inscrita na concepção mística da Cabalá, que apresenta o exílio como exterioridade, mas, no fim de contas, como território de onde se observa esse outro espaço sagrado. Sem focalizar aqui os seus exageros, pode-se dizer, que todas as culturas se impôs o interesse pelo estranho fenómeno do sonho e a sua decifração. Hoje já temos elementos suficientes de análise que nos permitem assinalar - partindo deste ensaio - que o judaísmo não constitui excepção. Por mais ambíguo que possa parecer, tinham a noção do sonho - através das crenças populares herdadas da antiguidade - como chaves para todas os enigmas e também viam no sonho uma mensagem divinatória. Os rabis talmudistas - identificando-se com o moderno freudismo - já admitiam que por trás do conteúdo manifesto do sonho existe um conteúdo latente representado nos elementos manifestos como uma forma modificada, simbólica ou não (Haddad, Gérard, L’Enfant Illegitime, Point Hors Ligne, 1990).
Sabedoria esotérica e secreta
Dir-se-á que a “Cabalá” - como é fácil de ver, através da análise da sua etimologia, - vem da palavra hebraica “Cabel”, que significa receber. É, portanto, um recebimento, uma tradição. Anima-a, portanto, uma tradição religiosa anterior, que vem, como se sabe, de longe. Um sopro de recôndita tradição oral e escrita remete-nos aos tempos de Moisés, no Sinai, alicerçado quase exclusivamente na interpretação da “regulamentação” divina. Note-se bem: em toda a sequência da sua formação e do seu desenvolvimento, chega-se a uma outra tradição, esotérica, àquilo que os cabalistas chamam Chen - numa palavra à graça ou sabedoria esotérica e secreta. Cabalá é tradição e, conquanto pareça hoje uma tradição aberta a qualquer um, poder-se-ia dizer que um discípulo cabalista é, duma maneira geral, um escolhido. Quer dizer: um iniciado em que o que está a ser ensinado, por exemplo, não pode ser compreendido através da discussão. Para além de ser uma tradição em que a pergunta é proibida, percebe-se melhor, agora, que esta tradição só possa ser compreendida por uma experiência mística própria. Não podia ser outro o pré-requisito (onde se impõem-se um certo número de princípios rígidos). É fácil compreender que na “iniciação” mística proliferem um certo número sinais (que dizem respeito ao “reconhecimento da face” ). Aqui se incluem sinais fisiognômicos, grafológicos, xiromânticos e mesmo a horoscopia, a astrologia, à qual a mística sempre se associava. Tudo se condensa, portanto, na parte da Cabalá que chamamos extática. Depois, viria a propósito falar de uma outra forma de Cabalá: a Teosófica. Note-se que a Cabalá Extática visava um processo de êxtase, que levaria a uma visão do divino. Esse misticismo, por sua vez, não se interessava em compreender as exteriorizações da glória divina, o que o coloca frontalmente contrário à Cabalá Teosófica, cujas obras tentam compreender justamente isso (lembremo-nos do Sepher há-Zohar).
Tradição e aventura
Eis-nos diante de numerosos cabalistas - expoentes da cabalá - que praticaram uma escrita alusiva e elíptica, uma espécie de “semi-dizer”. As doutrinas da mística judaica, em algumas das suas raízes, presumivelmente tão velhas como a revelação da Torá a Moisés, que podemos atribuir ao profeta Elias, estão correlacionadas com o seu ensinamento esotérico, a revelação dos segredos do Pentateuco. Outro exemplo é a da visão de Ezequiel, da Merkavah (o carro de Deus) e do Templo ideal dos tempos escatológicos. Dá-se conta da sua importância, de uma forma mais aguda, quando sabemos ter sido, desde o século XIII, na Provença, o termo aceito popularmente para se referir aos ensinamentos esotéricos que dizem respeito a Deus e a tudo que Deus criou. No entanto, haverá que ter em conta que já existia, em Israel e no Egipto, no começo tumultuado do cristianismo, um corpus considerável de saber teosófico e místico (basta pensa-se nos livros apocalípticos, dos quais o livro de Enoch é o mais notável). Partindo de dois textos bíblicos - o primeiro capítulo de Ezequiel e o primeiro capítulo do Gênesis - os cabalistas desenvolveram dois modos de especulação visionária: maaséh merkaváh (“o trabalho do Trono-Carruagem”) e masséh bereshít (“o trabalho da Criação”). Não é exagero dizer-se que usaram, pois, para os seus fins a teoria da emanação dos neo-platónicos. A Cabalá coloca a sua tónica dominante numa doutrina do Exílio. Cabalistas como Isaac Luria consideravam que a própria Criação se tornou Exílio. O lado esotérico do judaísmo ligado ao campo das questões assumidos pela cabalá como um caminho de elevação espiritual - uma mística como diz Marc-Alain Ouaknin em “Mystéres de la kabbale”- , poderia ser estudado, pelo menos, em duas direcções. A primeira concerne à cabalá teosófica, no qual a teoria da estrutura complexa do mundo do divino vem naturalmente se inscrever, e que toca as noções cosmológicas. A segunda direcção, concerne à cabalá teúrgica, consiste, em princípio, num conjunto de comportamentos rituais ou de meditação, sendo que este conjunto de experiências permitem suscitar um estado de harmonia na divindade ou influir sobre a sua relação com os homens. Poderíamos também reportar-nos à oposição entre cabalá especulativa (younit) ou filosófica (próxima do neoplatonismo e do estoicismo) e a cabalá dita prática (ma`assit) enquanto magia naturalis e via escatológica. A partir da aproximação das duas formas de cabala - teosófica e teúrgica - Marc-Alain Ouaknin enuncia uma nova formulação - a cabalá ética e a cabalá existencial - e aponta, igualmente, a dialéctica entre a tradição e a aventura (Ver Mystéres de la kabbale, éditions Assouline, Paris, 2000).
“Os homens do segredo”
Porque, apesar do que se tem dito em sentido oposto, o judaísmo move-se no interior de oposições permanentes 1º entre uma dimensão feminina da divindade (A Chekinah ou “presença”) e patriarcal; 2ª a necessidade de conservação e a necessidade de transformação; 3ª a via que conduz à topia da utopia imaginariamente concebida - o Reino - e a figura e o nome do Messias. Simultâneamente, ou na esteira de Moshe Idel, muitos investigadores de mérito dedicam-se à tarefa da restauração da verdade histórica da cabalá. Tanto haveria a citar que só me abalanço a referir Charles Mopsik - um pensador sem igual entre os estudiosos contemporâneos da Cabalá. Ele expõe, com efeito, que ao lado de uma necessária apreensão de uma época “filosófica-angeológica”, marcada pelas especulações em torno do alfabeto, é igualmente necessário pôr-se, ao mesmo tempo, em relevo uma época “teosófica-sefirótica”, marcada pela centralidade do sistema dos sefirot (Charles Mopsik, Cabale et cabalistes, Bayard Editions, Paris, 1997, p. 53) . Resta-nos, pois, examinar o Zohar que, enraizada na filosofia da Cabalá, se acomoda às parábolas e imagens mais paradoxais. Neste caso, a questão de saber se esta obra literária pode, em princípio, ser considerada a “súmula” da cabalá. Como já sabemos os ensinamentos da cabalá que, em seu conjunto, atravessaram o sul de França até Sefarad - universalizam-se - e passaram a ser cultivados em conventículos de iniciados de que surgiram as imponentes construções especulativas de Nachmânides, Abulafia, Moisés de Burgos, Jacó de Segovia, Iossef Gikatila, etc.. A mudança de clima cultural impôs aos “Baále há-sod” (“Os homens do segredo”) um novo trabalho de renovação. Realizaram-no excogitando novas interpretações da Torá, valendo-se da herança gnóstica, teosófica e pietista. Uma das tentativas mais ousadas nesse sentido (e é também a principal expressão da literatura cabalística) foi, no último quartel do século XIII, o Sefer há-Zohar ou Livro do Esplendor. É algo bem específico e distintivo na vasta e complexa unidade do génio sephardi. Assenta sobre uma espécie de repositório, um epos de uma aventura espiritual judaica, uma espécie de enciclopédia esotérica compilada por Moisés de Léon (morto em 1305). Ao lado da Bíblia e do Talmud é, por conseguinte, o terceiro livro de Israel. Eis aí um texto cuja força poética e voo místico torna -se assim uma filosofia operativa a redescobrir.
A Psicanálise e o saber talmúdico
No que respeita à psicanálise, a sua parte referente à explicação do sonho como método de cura de nevroses quanto possível, se abre às chamadas “camadas inconscientes, ocultas, da alma humana” (p. 9). Os sonhos enquanto “abertura para as camadas recalcadas da consciência” (p. 9) aparecem, dizíamos, “como revelações vindas dessa terra longínqua que é o inconsciente” (p. 9) (o Isso como o Eu e o Supereu estruturado como uma linguagem). A importância do livro de Sigmund Freud - Traumdeutung, que conhecemos como “A Interpretação dos Sonhos” é o ponto de partida para os conceitos posteriores que enriqueceram e desenvolveram a doutrina analítica, isto é: “o sonho é apenas a realização disfarçada de um desejo recalcado”. Examinemos este ponto. Na psicanálise a questão central é a do sujeitoTrabalha, porém, a partir de certas metáforas básicas. O ponto de vista psicanalítico deriva da noção do invariável fundo da “mesmidade” da pulsão (Trieb) que é capaz de atingir o seu alvo - a satisfação. Tudo se reporta ao corpo, o corpo animal, marcado pela “falta” e, assim, os próprios mecanismos de introjeção e de expulsão. Devemos recordar-nos, como já se disse, que tanto os psicanalistas modernos como os cabalistas o sonho - tanto quanto sabemos - “pode ser sinal de estados ou sentimentos de privação, tensão ou até de uma pressão ou repressão mais graves” (p. 9). Hoje sabemos que a psicanálise toma impulso, sobretudo, a partir das estruturas fundamentais do judaísmo - aquilo que Gérard Haddadd chama o saber talmúdico - e, em certos momentos, as resolve e subverte. Ela revela ser, mais do que um midrásh do quotidiano, desacralizado, uma prática da letra e do significante. Algumas razões há, decerto para isso - e seria difícil, mesmo em resumo, examiná-las nestas páginas de síntese. Tanto mais que repousa não, precisamente, apenas sobre a interpretação dos sonhos, mas também sobre os actos parasitários da nossa existência, o esquecimento dos nomes próprios, e outros lapsos da mesma natureza.
Moshe Idel, Cabalistas da Noite, tradução de Pedro Sinde