2012/02/29

BARROS BASTO

Palácio de São Bento, 28 de Fevereiro de 2012ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

(English translation above)

COMISSÃO DE ASSUNTOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS


PARECER



PETIÇÃO N.º 63/XII/1.ª - Pedido de reintegração no Exército do capitão de Infantaria Arthur Carlos Barros Basto, que foi alvo de segregação político-religiosa no ano de 1937



1. Nota introdutória

Isabel Maria de Barros Teixeira da Silva Ferreira Lopes apresentou uma Petição à Exª. Senhora PAR, pedindo a “reintegração no Exército do capitão de Infantaria Arthur Carlos Barros Basto, que foi alvo de segregação político-religiosa no ano de 1937”, identificada como Petição n.º 63/XII/1.ª.

A referida Petição deu entrada em 31.10.2011, sendo que, em 02.11.2011, foi redistribuída à Comissão de Defesa Nacional enquanto Comissão competente por decorrência do despacho de S. Exª. a PAR, em 02.12.2011, como resposta a requerimento de reapreciação do primeiro despacho efectuado pelo Exmº. Senhor Presidente da Comissão de Defesa Nacional em 28.11.2011.

Em 13.12.2011, o Exmº. Senhor Presidente da Comissão de Defesa Nacional, através do ofício n.º 76/COM/2011, solicitou ao Exmº. Senhor Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, o envio de um parecer apto a melhor prover a boa decisão da Comissão de Defesa Nacional, tendo em conta que o fundamento da Petição invoca “a violação grave de direitos humanos e a afectação intolerável do núcleo duro dos direitos fundamentais materialmente protegidos pela Constituição da República Portuguesa”.

Estas são as motivações formais do parecer que adiante se explana.



2. Antecedentes – o processo disciplinar militar

O capitão Arthur Carlos Barros Basto nasceu em Amarante, em 18 de Dezembro de 1887, no seio de uma família cristã mas com ascendência criptojudaica, sendo que o seu avô chegou a praticar os ritos religiosos hebraicos – facto que Arthur Barros Basto só teve conhecimento no início da adolescência1.

Arthur Carlos Barros Basto foi um militar português distinto, tendo comandado um batalhão do Corpo Expedicionário Português na Flandres durante a I Guerra Mundial e sido agraciado com condecorações por bravura militar, entre as quais a Cruz de Guerra. Já anteriormente, em 1910, logo após ter cursado a Escola de Guerra, Barros Basto se havia afamado pelo seu papel na implantação da República e por ter sido o militar que hasteou a bandeira dos revoltosos na cidade do Porto.

Contudo, o seu percurso existencial é marcado pela conversão à religião dos seus antepassados, facto que apenas decorreu depois da I Guerra Mundial, e pelos esforços em resgatar os criptojudeus – bem como aqueles que se consideravam descendentes dos antigos judeus portugueses há vários séculos forçados à conversão - para a liberdade de culto religioso e a decorrente assumpção da fé e dos rituais religiosos judaicos. Tendo adoptado o nome hebraico de Abraham Israel Ben-Rosh, Barros Basto iniciou uma porfiada campanha nacional e internacional pela busca e conversão dos descendentes dos judeus portugueses marranos, conhecida pela “Obra do Resgate dos Marranos”. Fê-lo com empenho e convicção tais que o historiador inglês, Cecil Roth, o veio a cognominar como o “Apóstolo dos Marranos”2. A partir de 1921, na cidade do Porto, Barros Basto deu início a uma profunda revitalização da comunidade israelita local, edificando a sinagoga do Porto, Mekor Haim, fundando o jornal Ha-Lapid e um instituto teológico, Yeshivah, e partindo daí para o estabelecimento de novas comunidades por todo o Norte de Portugal, criando a sinagoga de Bragança e patenteando um proselitismo judaico bastante activo que, embora se enquadrasse no paradigma de liberdade religiosa da Constituição de 19113, acabou por se transfigurar numa conduta malquista aos olhos do regime saído do golpe do 28 de Maio de 1926.

Com a mudança de regime4, a “Obra do Resgate” e os novos judeus convertidos começam a encontrar dificuldades crescentes e o próprio Arthur Barros Basto é sujeito a limitações pessoais e profissionais que não deixam quaisquer dúvidas acerca do incómodo resultante do seu comportamento: em 1928, é exonerado da Direcção da Casa de Reclusão; em 1931, é-lhe fixada residência fixa com proibição de saídas nocturnas; e, em 1932, há uma tentativa de o afastar do Porto colocando-o em Évora (deslocação que acabou por não acontecer)5.

O processo disciplinar militar n.º 6/1937 que redundou no seu afastamento do Exército Português terá tido origem em duas cartas anónimas, datadas de 1934 e de 1935, que acusavam o capitão de práticas de homossexualidade. Desse modo, em 12 de Junho de 1937, o Conselho Superior de Disciplina Militar, apesar de ter absolvido Arthur Barros Basto nos quesitos em que se indagavam as acusações de comportamentos homossexuais6, por unanimidade, considerou provado que este realizava “a operação de circuncisão a vários alunos”7 do Instituto Teológico do Porto e que tomava com estes “intimidades exageradas, beijando-os e acarinhando-os frequentemente”8. Como derivação de essas comprovações, o Conselho Superior de Disciplina Militar considera demonstrado no quesito 5.º, já quase à guisa de conclusão, que o capitão Barros Basto procedeu “de modo a afectar a sua respeitabilidade” e o “decoro militar”. Essa ilação é repisada no quesito 7.º, onde se deprecia o facto de Barros Basto não ter usado de qualquer atitude “violenta” – o que o Conselho Superior de Disciplina Militar considera justificado – para se “desafrontar e ilibar a sua honra e dignidade tão rudemente atingidas”, encarando, ainda, o referido Conselho que a omissão do capitão em usar a brutalidade como instrumento de redimir a sua “honra”, bem como o atraso em apresentar queixa contra os seus caluniadores teriam atingido “o brio e o decoro militar”9.

É nestas considerações, inferências e suspeições, que o Conselho Superior de Disciplina Militar estriba a sua decisão final, também obtida por unanimidade, de declarar Arthur Barros Basto destituído da “capacidade moral para prestígio da sua função oficial e decoro da sua farda”, aplicando-lhe a pena de “separação de serviço”, prevista no art. 178.º do Regulamento de Disciplina Militar então em vigor – Decreto 16.963, de 15 de Junho de 1929.

A decisão finaliza com o despacho ministerial datado de 21.06.1937: “Execute-se”, firmou o ministro Santos Costa.

Assim se fez.





3. Antecedentes – o requerimento da viúva de 03.07.1975

Arthur Barros Basto ficou definitivamente afastado da sua carreira militar e viu a sua vida e a missão de resgate dos marranos portugueses fatalmente condicionadas pela decisão do Conselho Superior de Disciplina Militar e do ministro Santos Costa. Faleceu em 1961 sem nunca ter conseguido reverter os efeitos da sua condenação.

Após a revolução de 25 de Abril de 1974, no dia imediatamente subsequente, a Junta de Salvação Nacional, assumindo os poderes legislativos do Governo, emana o Decreto-Lei n.º 173/74, de 26 de Abril, que, no seu art. 2.º, n.º 1, determinava a reintegração “nas suas funções, se o requererem, os servidores do Estado, militares e civis, que tenham sido demitidos, reformados, aposentados ou passados à reserva compulsivamente e separados do serviço por motivos de natureza política”10.

É nesse contexto histórico, político e jurídico, que a viúva de Arthur Barros Basto, Lea Monteiro Azancot Barros Basto, em 03.07.1975, formula um requerimento dirigido ao presidente da República, General Costa Gomes, em que solicita que se faça justiça à memória do seu defunto marido “promovendo-se a reabilitação moral e reintegração, anulando-se esse miserando processo que lhe foi organizado e a sentença de separação tão iniquamente mandada cumprir pelo ministro Santos Costa”11.

A resposta foi negativa e sustentada num parecer que concluiu que o requerimento deveria ser indeferido por “o caso em apreço não se inserir no âmbito do Decreto-Lei n.º 173/74”12. Esse parecer/decisão circunscreve a lógica do requerimento a um pedido de benefícios financeiros e baseia-se na pressuposição de que a sanção aplicada a Barros Basto em 1937 se fundamentaria em práticas homossexuais com alunos do Instituto Teológico do Porto – o que, como já atestámos, é integralmente negado na própria decisão sancionatória do Conselho Superior de Justiça Militar.

Ou seja, o parecer e o indeferimento do requerimento da viúva de Barros Basto, de 1975, embora simulando assentir com a decisão condenatória de 1937, estribam-se numa interpretação dos factos que é total e integralmente desmentida por essa mesma decisão!

Em bom rigor, trinta e oito anos depois, vêm dar como provados factos que a decisão do Conselho Superior de Disciplina Militar, de 1937, tinha dado como não provados “por unanimidade”13. O parecer/decisão de 1975 faz uma estranhíssima reinterpretação dos acontecimentos, deixando de lado a própria decisão condenatória que sancionou Arthur Barros Basto, apesar de formalmente a quererem arrimar, reinventando acusações, circunstâncias e motivações. Mais do que uma confirmação da primeira sanção, o parecer/decisão de 1975 alça-se ao patamar de uma segunda condenação em paralelo impossível com a primeira, já que pretende julgar Barros Basto ab initio, sentenciando o antigo militar português in absentia por mortis causa - enquanto pontapeava com uma ligeireza estonteante um importante acervo de princípios lógicos e jurídicos, entre os quais se realça o sempre salutar non bis in idem…

O caso de Arthur Barros Basto, sobretudo a demora e os diversos engulhos que têm obstaculizado a sua reabilitação, nunca deixaram de causar inquietação dentro e fora de Portugal. Já no requerimento de Lea Monteiro Azancot Barros Basto, de 1975, se refere que o caso tinha vindo a ser referido como o do “Dreyfus português”.

De facto, assim é. Remetendo-nos apenas aos últimos anos verificamos que a não resolução do caso Barros Basto tem despertado crescente interesse na comunicação social portuguesa14 e internacional15 através de artigos16 e petições17, sendo que a imagem de Portugal tem sido interpelada pelo facto de que por entre os muitos milhares de situações de segregação religiosa e anti-semita que desgraçadamente aconteceram nos anos trinta e quarenta do século passado, o caso de Arthur Barros Basto é um dos poucos que ainda subsistem sem resolução condigna nos países sob um Estado de Direito livre e democrático.



4. Opinião do Relator

4.1. A decisão do processo disciplinar militar de 1937

A decisão sancionatória do Conselho Superior de Justiça Militar no processo disciplinar militar n.º 6/1937 é clara quanto ao itinerário cognoscitivo e valorativo que a motiva. Sem bases factuais para poder atingir uma condenação baseada na acusação de práticas homossexuais, suscitada pelas missivas anónimas, tenta subsumir os factos provados em invólucro jurídico semelhante visando atingir um resultado sancionatório que se afigura como pré-definido. Nesse sentido, sobrevaloriza-se a relevância de Barros Basto manifestar com os seus alunos do Instituto Teológico “intimidades exageradas, beijando-os e acarinhando-os frequentemente” - partindo de esse facto conhecido e provado, a decisão sancionatória irrompe para uma conclusão desconhecida e necessariamente deslocada18 de que o capitão condecorado por bravura na I Grande Guerra não disporia de “capacidade moral para prestígio da sua função oficial e decoro da sua farda”.

Ainda mais grave e bastante mais revelador na decisão sancionatória de 1937 é a elevação do quesito 4º, que foi dado como provado, e que assegura que Barros Basto efectuava “a operação de circuncisão a vários alunos, segundo um preceito da religião israelita que professa”19. É que este facto cimenta, também, a conclusão de menor “capacidade moral para prestígio da sua função oficial e decoro da sua farda” com que Barros Basto foi condenado, apesar de se reconhecer explicitamente que tal derivaria de um ritual religioso – circunstância explicativa que não teve robustez suficiente para o retirar do contexto de imoralidade subjectiva em que a decisão do Conselho Superior de Justiça Militar o coloca de modo forçado e desviado. Donde, não pode deixar de se entender que a comprovação da prática daquele preceito religioso, enquanto tal, foi tida e considerada como um acto susceptível de afectar a moralidade de um oficial português, bem como o “prestígio” e “o decoro da sua farda”.

Chegados aqui, a elucidação cabal da condenação de 1937, torna-se inafastável: Arthur Barros Basto foi “separado do exército” devido a um clima genérico de animosidade contra si motivado pelo facto de ser judeu, de não o encobrir, e, pelo contrário, de ostentar um proselitismo enérgico convertendo judeus portugueses marranos e seus descendentes. Numa época histórica matizada pelo sentimento anti-semita, em que as mais abjectas teses acerca de raças superiores e inferiores pululavam pela Europa, Portugal não ficou totalmente imune a essas ideias – tal como nenhum outro país europeu desse tempo – e a sentença que vitimou Arthur Barros Basto é disso a prova mais plena e lamentável.



4.2. O parecer/decisão de 1975

A decisão de 1975 é juridicamente insustentável e moralmente arrepiante. Contradiz a matéria probatória adquirida no processo disciplinar militar n.º 6/1937 que sentenciou Barros Basto. Extrapola livremente, inventa factos, deles extrai ilações não certificadas e alcança uma segunda condenação póstuma dirigida a Arthur Barros Basto sem qualquer alicerce factual ou jurídico.

O significado de essa decisão, e, concomitantemente, do parecer que a ampara, constitui uma opinião jurídica suscetível de causar as maiores perplexidades.

Em primeiro lugar, reduz o requerimento da viúva de Arthur Barros Basto, de 03.07.1975, a um mero “pedido de benefícios resultantes da reintegração, concernente a um militar já falecido”20. Ignora e evita toda a lógica da argumentação do pedido dirigido ao presidente Costa Gomes, sobretudo a claridade da expressão “reabilitação moral” que a viúva utiliza por duas vezes nesse documento, sempre imediatamente sequente à expressão “reintegração”21. Parte da premissa, aparentemente insindicável para o autor daquele parecer/decisão, de que o pedido da viúva de Barros Basto se motivaria em razões puramente financeiras, de uma fútil sede de “benefícios”, afastando da ponderação necessária o desagravo moral do militar falecido que tinha sido enxovalhado durante os vinte e quatro anos que distaram entre a sentença que ditou a separação do Exército Português e a sua morte ocorrida em 1961 - bem como a indispensabilidade do desejo de justiça e de restabelecimento da verdade e do bom nome do seu familiar por parte de quem com ele tinha sofrido antes e depois do seu falecimento à conta de uma decisão ignominiosa.

Depois, de modo ainda mais surpreendente, o parecer que originou a decisão de indeferimento do requerimento da viúva, julga descortinar um desvio entre os factos alegados por esta e a realidade sucedida em 1937, referindo expressamente que “o problema focado pela impetrante (inserção, no espírito do Dec. Lei nº. 173774, dos casos de segregação político-religiosa, principalmente quando ocorridos numa época em que, como é do conhecimento geral, o anti-semitismo campeava na Europa) teria muito interesse em ser debatido não fora a circunstância de os factos desmentirem por completo semelhante asserção”22. E, seguidamente, no ponto 4 do mesmo parecer, é explicitado em que medida é que a decisão do Conselho Superior de Disciplina Militar, de 1937, teria sido fundamentada por factos diferentes dos expostos no requerimento de Lea Monteiro Azancot Barros Basto: “os factos que justificaram esta decisão, que veio a ser homologada por despacho ministerial, traduzem-se em práticas homossexuais com vários alunos do Instituto Teológico Israelita do Porto, de que era diretor, práticas essas que mantinha de longa data – há mais de dois anos e menos de cinco – o que nada tem a ver com as cerimónias prescritas pela religião semita”23.

Saliente-se que esta decisão de 1975 não foi elaborada no mesmo contexto de ódio anti-semita que caracterizou os anos trinta do século XX em quase toda a Europa (embora tal ambiente nunca possa servir de atenuante) mas num momento de pós revolução do 25 de Abril de 1974 em que Portugal acordava para liberdade e para o respeito dos direitos fundamentais, valorações que hoje matizam o nosso Estado de Direito. O que converte esta decisão num paradoxo histórico e jurídico de muito difícil compreensão.

O autor do parecer/decisão de 1975 quis afastar a questão da segregação político-religiosa, talvez por perceber que esta transbordava na decisão do Conselho Superior de Justiça Militar de 1937, e exerceu toda a sua força argumentativa no sentido de a circunscrever no plano factual de práticas homossexuais, abjurando, de modo expresso e irremediavelmente ilegítimo, toda a prova realizada em 1937 pelo órgão competente. Distorceu os factos, refê-los de acordo com o feitio que julgava melhor adequado para tornar improcedente o requerimento da viúva de Arthur Barros Basto. Como já afirmámos, este parecer/decisão consubstancia uma segunda condenação, muito mais do que uma confirmação da primeira e em paralelo impossível com esta.



4.3. Os direitos humanos e os direitos fundamentais afectados

A distinção clássica entre direitos humanos e fundamentais resulta da diferente perspectiva histórica e jurídica em que essas duas categorias se enquadram. Enquanto que os primeiros são tendencialmente imutáveis, universais e a sua valoração não depende da consagração positiva, dimensão que Gomes Canotilho designa de “jusnaturalista-universalista”24, os direitos fundamentais, designadamente os de primeira geração, serão aqueles de entre os primeiros que estão positivamente reconhecidos por uma ordem jurídica concreta e por esta definidos e limitados quanto ao seu sentido, alcance e força vigente25.

A liberdade de religião está presente em qualquer uma de estas dimensões. Aliás, muitos autores referem a tolerância religiosa como a liberdade matriz, aquela de cuja demorada luta pela sua consagração deu origem à Liberdade dos Modernos e a todas as demais liberdades e direitos do homem26. Assim, a liberdade de religião e de culto, hoje consagrada como direito fundamental no art. 41.º da Constituição portuguesa, constitui simultaneamente uma expressão prioritária e original dos direitos do homem e uma liberdade constitucionalizada que dispõe do regime próprio dos Direitos, Liberdades e Garantias (DLG).

Realce-se que, no âmbito dos DLG, apenas o direito à vida, consagrado no art. 24.º, possui um resguardo tão tonificado, representado pela expressão verbal “inviolável” que está presente no n.º 1, do art. 41.º - como bem notam Jorge Miranda / Rui Medeiros27. Este facto aporta consequências: dada a sua natureza de intrínseca inviolabilidade, qualquer afectação de esta, i.e. toda a intrusão cerceadora, pública ou privada, no âmbito da liberdade de religião e de culto será necessária e automaticamente cominada como uma quebra do núcleo duro que o direito fundamental pretende ressalvar. Em suma, qualquer violação de essa liberdade, ainda que aparente ser de intensidade mínima, sê-lo-á sempre aferida no seu ponto máximo e integral.

Este amparo específico que a Constituição portuguesa oferece à liberdade de religião e de culto parece ser ainda mais veemente do que aquele que é facultado pelo direito europeu, no art. 10.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia28 razoavelmente decalcado no art. 18.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem29.

A condenação de Arthur Barros Basto pela decisão do Conselho Superior de Justiça Militar no processo disciplinar militar n.º 6/1937 é justificada factualmente e motivada valorativamente por intolerância religiosa e por um preconceito antisemita verdadeiramente indisfarçáveis na análise dos autos daquele processo.

Por sua vez, o parecer/decisão de indeferimento do requerimento da viúva Lea Monteiro Azancot Barros Basto, datado de 1975, tenta compor falaciosamente essa motivação anti-semita e engendra um arremedo de factos, que haviam sido dados como não provados em 1937, tentando, em vão, transmitir alguma idoneidade a uma decisão antecipadamente definida – mas que, distraindo-se dos factos, recai irremediavelmente num outro preconceito, a homofobia.

Ambas as decisões abalroam fatalmente a materialidade dos preceitos que sustentam a liberdade de religião, quer no âmbito dos direitos do homem quer no dos direitos fundamentais.

A resposta à Petição n.º 63/XII/1.ª - “Pedido de reintegração no Exército do capitão de Infantaria Arthur Barros Basto, que foi alvo de segregação político-religiosa no ano de 1937” -, por muito que se possa (e se deva) pugnar pela ilimitação espacial e temporal da protecção dos direitos do homem, deverá ser aferida tendo em conta o objecto do pedido: uma reabilitação póstuma de um militar gravemente injustiçado há setenta e cinco anos e cujo regime jurídico se deverá remeter para o plano dos direitos fundamentais actualmente vigentes por força constitucional.

No quadro de estes, a reabilitação de Arthur Barros Basto afigura-se como inevitável.

Não nos podemos prender com eventuais discussões acerca das peculiaridades normativas e interpretativas específicas do regime jurídico em vigor aquando da decisão do processo disciplinar militar n.º 6/1937, nem nos parece que seja esta a sede adequada para cotejar a natureza imprescritível dos direitos do homem constrangidos nesse processo, apesar de perfilharmos o entendimento de que o foram de modo intolerável.

Ainda assim, é nossa convicção que a Petição sub judice deverá ser aferida de acordo com o direito actualmente vigente, i.e. no quadro jurídico-constitucional presente no momento da interposição da Petição dirigida à PAR pela neta de Arthur Barros Basto, Isabel Maria de Barros Teixeira da Silva Ferreira Lopes.

E, nesse contexto, a referida Petição não poderá deixar de obter deferimento.



4.4. Para além do Direito

Todas as nações, volitivamente ou não, têm páginas esquecidas na sua história, feitas de factos passados mas não queridos, mais ou menos superados mas que poucos querem ver evocados num presente que se julga emancipado de traumas mais antigos. Não se podem negar os longos séculos de anti-semitismo em Portugal, nem as perseguições aos que se supunham de religião judaica ou, até, dirigidas a católicos que se presumiam descendentes do povo hebreu. Contudo, a assumpção de esses traumas revela-se mais penosa quanto menos longínquos forem os tempos da sua ocorrência. Todavia, ainda se revela assaz difícil a admissão de condutas semelhantes quando estas apenas datam de há algumas décadas.

Principalmente para um País neutral na II Grande Guerra, após a derrota das potências do Eixo quase se vedou a possibilidade de conceder que, em Portugal, também existiram simpatias com ideologias e práticas que tanto envileceram os países então derrotados – como foi o caso do anti-semitismo de outras segregações étnicas ou comportamentais igualmente degradantes. Mas Portugal, apesar do actual ambiente geral de tolerância, não ficou então imune a esses sentimentos, embora o poder político sempre o desdissesse formalmente.

O pedido de reintegração de Arthur Barros Basto não se restringe à reabilitação e à reintegração no Exército Português de um militar injustiçado há setenta e cinco anos. Muito mais do que isso, após os caminhos demorados e oblíquos que o caso tomou antes e depois da implantação da liberdade e democracia políticas em Portugal, a sanação de este caso traduz-se numa reparação da dignidade moral do próprio País enquanto nação profundamente respeitadora da integridade dos direitos fundamentais, pedra basilar da materialidade do nosso Estado de Direito. Reabilitar Arthur Barros Basto é reconhecer um erro trágico cometido há mais de sete décadas, regenerando, com isso, o presente e o futuro dos portugueses que se quer livre, democrático e tolerante. Com a reabilitação póstuma de Barros Basto serão todos os portugueses a serem ilibados de uma injustiça cometida contra um homem mas que acabou por manchar todo um colectivo.

José Carlos Vieira de Andrade afirmou que “o indivíduo só é livre e digno numa comunidade livre; a comunidade só é livre se for composta por homens livres e dignos”30. Ora só é livre e digno aquele povo que não consente a manutenção de uma iniquidade no seu seio. A restituição póstuma da honra de Arthur Carlos Barros Basto e a sua reabilitação moral fará Justiça do modo mais perfeito: desfazendo uma injustiça.

Assim, todos nós, portugueses, seremos homens e mulheres mais livres e mais dignos.





Face ao exposto, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias é de parecer:

1. Que, por força da aplicabilidade directa estabelecida no art. 18.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e em face da manifesta violação da liberdade de religião e de culto que foi perpetrada contra Arthur Carlos Barros Basto e que está assegurada pelo art. 41.º, n.º 1, da mesma lei constitucional que, de acordo com o art. 16.º, n.º 2 do mesmo texto constitucional deverá ser interpretada e integrada em harmonia com o art. 18.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como mediante o estatuído no art. 10.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e ainda, pela aplicação do art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 173/74, de 26 de Abril, o Estado português tem o indeclinável dever de deferir o pedido ínsito na Petição n.º 63/XII/1ª, reintegrando postumamente no Exército Português o capitão Arthur Carlos de Barros Basto.

2. Que deve o presente parecer ser remetido, para os devidos efeitos, à Comissão de Defesa Nacional.

3. Que deve ser dado conhecimento do presente parecer à peticionária.



Palácio de São Bento, 28 de Fevereiro de 2012



O Deputado Relator O Presidente da Comissão





(Carlos Abreu Amorim) (Fernando Negrão)